quarta-feira, 5 de junho de 2019

Ao acaso



O vinho escorre por entre seus seios: fio comprido, cor de âmbar, forma poça entre os pelos. A boca do homem, beira a vulva à espera – língua comprida e quente faz cócegas em suas entranhas. Seus olhos perdem-se através da janela. Ausentes do ato, presentes na memória. No passado o vinho foi denso. Rubro, escorreu pela glande lambuzada dos seus desejos. As mãos aparando golpes no ar em krav-magá imaginário. A sessão de intensas estocadas fazendo coro nas pupilas dilatadas. E o gozo a folgar os nós do estômago. Hoje o vinho chega aos lábios de outro. Forasteiro dela, guardião provisório de seus mais baixos instintos. A pressão na veia lhe ressoa oca nos ouvidos. As carnes abertas tremem como dançarinas bêbadas, prendem a cabeça dele contra o volante. O estacionamento do supermercado não fecha. Outros machos passeiam entre fêmeas reluzentes e de desejos efêmeros. Os lábios se juntam nas gotas translúcidas, prendem a dor fina por sobre a pele. O teto solar aumenta as estrelas pálidas. Ontem ele era nada, agora cavalo indomado a arrancar relva molhada. Vê sua nuca e orelhas. Sem ver a boca, deságua-se vinho num orgasmo bêbado. E fica livre. Envia-lhe seu olhar desconhecido e a depressão atmosférica. Vai chover. O supermercado vai fechar. Precisa buscar bifes e batatas. Tranca o carro. Chuta a mediocridade antes que o vômito a tome.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Ato Final


Com o rosto entre as mãos, sentou-se aos pés da cama. Finalmente tomara a decisão. Nunca mais veria o armário ser esvaziado. Nunca mais a solidão invadiria lençóis amarrando-o aos dias vazios. Havia se rendido a ela. Aceitou sua volta em silêncio. Como das outras vezes. Como se as longas ausências não tivessem estraçalhado com sua autoestima e definitivamente o transformado num arremedo de si mesmo, num monte de medos. Aceitou sua volta escondendo o quanto a queria. O quanto suas mãos precisavam fechar-se em volta dela. Suas mãos sempre foram instrumentos do prazer da mulher. Os gemidos dela faziam sua boca secar e o sexo doer, enquanto permanecia mudo, covardemente mudo. Excitava-se com a excitação dela. Mesmo quando se negava a ele. Quantas vezes ele tivera que se satisfazer tocando-se, tocando-se, enquanto a olhava masturbar-se e gritava o nome de outro. Feri-lo era o maior prazer dela. Era seu capricho transformá-lo naquele monte de merda que boiava nas águas do sofrimento e da castidade que lhe impunha. Não se arrependia de ter-lhe feito todos os caprichos. Mas chegara ao limite, aquela tênue linha que separa a sanidade do nonsense. Uma linha que ele esticara diversas vezes até tê-la arrebentada, trazendo-lhe de volta o orgulho. Ela fora sua única mulher. Única. Sofreu com os mistérios que a cercavam, mas sabia que para tê-la tinha que aceitar aquela ferida aberta sangrando diariamente seu amor-próprio. Tinha que engolir os silêncios que respondiam suas perguntas. Tinha que continuar vomitando escondido o fel do ciúme. Ao acordar, existia sempre aquela boca ao lado da sua. Aqueles seios arrogantes a ditar-lhe ordens. E ele, vassalo, tirando-a dos sonhos com a língua em seu corpo. Invariavelmente, ela lhe agarrava os cabelos até arrancar-lhe um grito de dor. Cuspindo-lhe insultos, fechava-lhe as pernas e mandava-o se masturbar. A raiva fazia seu sexo doer. Em movimentos fortes e rápidos, ele esvaziava-se daquele sêmen covarde, lambuzando barriga, coxas e pernas da mulher. O prazer da vingança durava até ela exigir que a limpasse com lambidas rápidas. Ele sentia seu próprio gosto e a humilhação devassava o que lhe restava de respeito próprio. Depois deitava-se ao seu lado. Era o que importava. Fechava os olhos e inspirava sua respiração. Alimentava-se da esperança de cada dia que nascia nela. Até que, enfastiada, empurrava-o para o chão e se vestia para outras vidas. Também não se arrependia agora do ato final. Estavam ambos descansados daquela inquietude que fazia da mulher um frio algoz, o que levava seu coração a espremer-se no peito. Outra despedida ele não suportaria. Não mais a imaginaria dividindo lençóis, somando bocas, multiplicando gozos. Não mais se sentiria morrendo, lenta e dolorosamente, naquelas incontáveis horas de espera. De agora em diante, seguiriam separados. Não por obra da vontade dela, mas pela indestrutível necessidade dele. Deu uma última olhada no vermelho que escorria aos seus pés. Finalmente dormiriam sob o mesmo teto. Ela debaixo dele, como nunca estivera. E ele a caminho do inferno.

Pé de laranja


Subir em pé de laranja nunca foi fácil. Arranhava as coxas, cortava os braços, mas sempre valia a pena olhar o mundo lá de cima.Laranjas serra d’água, a mãe lhe dizia. Era a mesma laranja-lima daquele livro que ela lia para Alice, quando era pequena. Mas em Minas, tinha este nome. Alice achava que era porque Minas tem muitas serras e muitos rios. Ela gostava de abrir a laranja enfiando o dedo fura-bolo e partindo-as ao meio. Não se importava que o caldo escorresse pelo seu uniforme de escola. A blusa já andava mesmo meio encardida.
Todos os dias, chegava da escola às onze e meia, mas a mãe só sentia sua falta lá pelas duas da tarde. Tinha muito tempo para olhar o mundo, chupar laranjas e sonhar. Sonhava tantas coisas. Com duas barbies e sua casinha, com vestidos e sapatos que via nas vitrines. Mas seu sonho mais sonhado era ter um pai que todos os dias a esperasse em casa. Sonhava também não precisar ver, quase sempre, um homem diferente que se despedia da mãe como se ela não existisse. Eles jogavam o dinheiro sobre a mesa e saiam.
Um dia quis saber dela porque eles lhe davam dinheiro. Ela não respondeu. Continuou na corrida de fazer almoço atrasado. Perguntou novamente. Ela lhe deu um tapa na boca.O sangue sujou seus dentes e lábios. De tão espantada, não chorou. Ela também se espantou. Pediu perdão. Disse que estava garantindo que a filha tivesse uma vida melhor que a dela.Tentou abraça-la. Alice fugiu para o quintal. Desde este dia o pé de laranja serra d’água virou também seu confidente.
Quando se formou no ensino fundamental, não tinha mais escola para ela em Santa Maria. A mãe resolveu que iriam para Itabira. Mudaram-se com o pouco que tinham e como dinheiro de um dos homens que visitavam a mãe, o único que passava a mão na cabeça de Alice e sorria para ela. Era um empréstimo, a mãe dizia a ele e a ela mesma. Ele dizia: não precisa me devolver. Você sabe como me pagar.
Itabira não as recebeu muito bem. Todas as noites ela ouvia a mãe chorar. Tampava os ouvidos. Fingia que ainda estavam em Santa Maria e que no dia seguinte rasgaria suas mãos nos espinhos da laranjeira.Voltaria a sonhar. Mas o dia seguinte era igual a todos os outros daquele último ano. A mãeficava cada vez mais estranha e agia como se nada estivesse acontecendo. Alice aprendeu também a fingir que estava tudo bem. Tinha medo de perguntar e não saber o que fazer com a resposta.
Continuava chegando mais tarde em casa. E a mãe trancada no quarto na hora do almoço. Ficava na biblioteca da escola, cada vez mais encantada com as viagens que fazia nos livros. Quando terminou de ler Teresa Batista Cansada de Guerra não pôde deixar de pensar em sua mãe. E pensou que se sonhasse forte ela poderia encontrar um Jereba, mesmo que fosse casado.A ideia era tão boa que saiu correndo para contar a ela. Chegou em casa sem fôlego.Foi direto para a cozinha. Na pia estava aquele facão que a mãe usava para cortar osso da carne de porco. Sempre achou que ele não era bem afiado, porque ela tinha que bater com um pedaço de madeira para cortar o osso. Mas ela não deixava Alice chegar nem perto dele.
Era estranho ela não estar ali. As visitas dela nunca ficavam até aquela hora. Percebeu o silêncio sussurrando na casa.Não a chamou. Não tinha este costume. Foi ao fogão e as panelas estavam vazias. Apenas a panela de feijão permanecia lá, quieta e fria.Passeou o olhar em buscar de algo diferente na cozinha. Apenas a ausência dela e aquele facão meio enferrujado sobre a pia.
Voltou pelo pequeno corredor e entrou no quarto que dividia com ela. Tinha um medo estranho doendo no estômago de Alice. Um medo que a fez parar assim que entrou no quarto. Lembrou das orações que a avó lhe ensinara quando pequena, para seu anjo da guarda.Foi rezando e entrando devagar.Só a viu depois que rodeou a cama de casal onde dormiam. Ela estava no chão. Nua. Suas coxas estavam ensanguentadas, seus seios pequenos com um buraco entre eles e um caminho de sangue grosso saindo daquele buraco e se espalhando em sua barriga.
Ficou ali olhando-a. Sem reação. Sem grito. Sem choro. O anjo lhe dizia que deveria fazer algo, mas seus olhos estavam presos nela. Não soube por quanto tempo ficou assim.Só conseguiu pensar no facão lá na pia da cozinha. E na mãe definitivamente coberta de sangue ali no chão. Definitivamente.


A filha da pátria



Desde que perderam a mãe, o pai intensificou suas ausências. Conversara com a filha mais velha. Explicara que era preciso defender a liberdade do país para que tivesse um bom futuro. Mais tarde ela entenderia. Todas as noites ele saía e chegava tarde. Depois, passou a chegar de manhã. Um dia não voltou. Um desespero silencioso correu pela casa. Os vizinhos nada diziam, apenas tinham olhos piedosos. Ajudavam no que podiam. Tempos depois o pai voltou. Tinha o olhar raivoso e as mãos machucadas. Faltavam algumas unhas, deixando os dedos com estranhas pontas vermelhas. A casa ganhou uma vida diferente. Durante o dia, silêncio. À noite, pessoas entravam e saíam pelo corredor. A filha não podiam mais falar o nome do pai. Não podia brincar, não podia correr, não podia falar quase nada. As janelas eram fechadas antes do sol se esconder e as flores murcharam nos vasos. Livros e papéis amontoaram-se no quartinho dos fundos. Vez em quando o pai recebia amigos. Sussurravam pelos cômodos da casa. Dormiam no quartinho, em meio aos papéis e livros. Uma noite a porta da casa foi arrombada. O barulho pareceu à ela a explosão de uma bomba. Homens enormes de botas pretas levaram os livros e os papéis. Levaram o pai e seus amigos. O pai nunca mais voltou.

overdose


Amava-o. Tanto que sempre esteve disposto a ignorar todas as suas mulheres. Aceitara continuar sendo sua sombra. Até aceitara continuar sendo homem daquela namorada que ele lhe arrumara. Eram esquetes necessários à grande encenação onde era o ator coadjuvante. Ainda assim Pedro o traíra. Uma traição muito além daquela carne tenra, daquele sorriso de garoto que lhe fora apresentado. Era o brilho de amor que os dois trocavam. Um brilho que nunca se acendera para ele. Deixou-os na sala. Não daria a eles o espetáculo das suas lágrimas. Lá fora a noite o abraçou. Deu-se ao choro. E caminhou até os pés se cansarem de chão, o rosto se fartar de sal, a mente voltar a se iluminar. Havia um limite para sua aceitação. Tirou do bolso a carteirinha branca. Olhou os papelotes de cocaína. Cinco gramas de sonhos. Cinco pequenos passaportes para o grand finale. E foi pensando assim que entrou no quarto onde Pedro dormia. No dia seguinte, vestiu-se como se fosse seu casamento. Entrou na imponente igreja disposto a manter-se sóbrio, digno, rosto sofrido, mas seco. Ignorou o desfile de óculos escuros, a falta de cores das roupas e os esparsos e surdos soluços à sua volta. Foi direto à urna que a família dele rodeava. Olhou-o e sentiu um pequeno aperto no peito. Ao ouvir as últimas palavras do padre os olhos arderam: – Pai, perdoe este filho. Ele não sabia o que fazia. Chorou. Não de arrependimento. Faria novamente se necessário fosse. Chorou pela saudade que iria sentir.

A força de Dalila


A tarde se estendia. Chuva mansa acariciava os canteiros de miosótis. Deixou-se ficar olhando as gotas descendo pela vidraça. Antes, não se importava de estar ali. Havia muito tempo não sentia nada. As sensações morreram quando ainda era criança. Debaixo do cinto e do sexo do pai. As meninas da casa diziam-lhe que alguns homens as faziam tremer. Com ela nada acontecia. Deitava-se com todos os homens nos quilômetros que separavam a fome e as míseras notas que garantiam o sustento da família. Homens suados e de mãos invasivas. Entregava-lhes tudo. Até conhecer Júlio. Sem que percebesse, a chuva parou. Como começara. Mansa e silenciosa. Vestiu-se. Olhou o quarto. O cheiro de lavanda barata a fazia sentir-se limpa. Reservara aquela noite para ele. Queria esperá-lo como se ele fosse seu primeiro homem. Pensou nos olhos de Júlio brilhando nos seus. Alto e magro. Sorriso enfeitando o rosto de pelos ralos. Um fio de calor começou a correr dentro dela. Parou ali entre as pernas. Cresceu. Sorriu. Enfim, reagia. Nascia a fome de ser tomada, mastigada, engolida. Gargalhou. Outra vez. E de novo. Até que a porta se abriu. E veio a notícia. Ela agora seria exclusividade do maior fazendeiro da região. Nenhum outro homem subiria ao quarto dela. Olhou a tarde morrendo lá fora. O grito triste da juriti entrou-lhe pelos ouvidos. E a fome dos irmãos ecoou em notas fúnebres. A mulher dentro dela mal nascera e já morria ali. Podia ouvir até os sinos anunciando o cortejo. Sem choro, sem flores, sem velas.

Guerrilheira

O capim seco e alto, um amarronzado infinito, arranhava rostos e braços. O medo os comia por dentro. O mesmo medo que os fazia aguentar aqueles lanhos na carne, o sangue secando sobre a pele dolorida, a fome a deixá-los cada vez mais bambos. Quando a noite chegou só havia o céu muito negro e bilhões de estrelas a cobri-los. Vamos nos deitar nesta picada – um dos meninos quase implorou. Beto a puxou contra seu corpo, enquanto os outros se acomodavam por ali. Sentiu sua ereção nas costas. Como ele podia querer sexo? Seu irmão havia sido preso e só Deus sabia o que lhe fariam. Com a língua, ele lhe acariciou o rosto. Apertou mais seu corpo no dela. Não sabemos o que vai nos acontecer amanhã – ele sussurrou no seu ouvido, arrepiando-a. Foi um sexo desesperado, com gosto de rio sujo. Descobriu depois. Eram suas lágrimas fazendo-lhe lama no rosto.

Ao acaso

O vinho escorre por entre seus seios: fio comprido, cor de âmbar, forma poça entre os pelos. A boca do homem, beira a vulva à espera – l...