quinta-feira, 23 de maio de 2019

A filha da pátria



Desde que perderam a mãe, o pai intensificou suas ausências. Conversara com a filha mais velha. Explicara que era preciso defender a liberdade do país para que tivesse um bom futuro. Mais tarde ela entenderia. Todas as noites ele saía e chegava tarde. Depois, passou a chegar de manhã. Um dia não voltou. Um desespero silencioso correu pela casa. Os vizinhos nada diziam, apenas tinham olhos piedosos. Ajudavam no que podiam. Tempos depois o pai voltou. Tinha o olhar raivoso e as mãos machucadas. Faltavam algumas unhas, deixando os dedos com estranhas pontas vermelhas. A casa ganhou uma vida diferente. Durante o dia, silêncio. À noite, pessoas entravam e saíam pelo corredor. A filha não podiam mais falar o nome do pai. Não podia brincar, não podia correr, não podia falar quase nada. As janelas eram fechadas antes do sol se esconder e as flores murcharam nos vasos. Livros e papéis amontoaram-se no quartinho dos fundos. Vez em quando o pai recebia amigos. Sussurravam pelos cômodos da casa. Dormiam no quartinho, em meio aos papéis e livros. Uma noite a porta da casa foi arrombada. O barulho pareceu à ela a explosão de uma bomba. Homens enormes de botas pretas levaram os livros e os papéis. Levaram o pai e seus amigos. O pai nunca mais voltou.

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