Desde que perderam a
mãe, o pai intensificou suas ausências. Conversara com a filha mais velha.
Explicara que era preciso defender a liberdade do país para que tivesse um bom
futuro. Mais tarde ela entenderia. Todas as noites ele saía e chegava tarde.
Depois, passou a chegar de manhã. Um dia não voltou. Um desespero silencioso
correu pela casa. Os vizinhos nada diziam, apenas tinham olhos piedosos.
Ajudavam no que podiam. Tempos depois o pai voltou. Tinha o olhar raivoso e as
mãos machucadas. Faltavam algumas unhas, deixando os dedos com estranhas pontas
vermelhas. A casa ganhou uma vida diferente. Durante o dia, silêncio. À noite,
pessoas entravam e saíam pelo corredor. A filha não podiam mais falar o nome do
pai. Não podia brincar, não podia correr, não podia falar quase nada. As
janelas eram fechadas antes do sol se esconder e as flores murcharam nos vasos.
Livros e papéis amontoaram-se no quartinho dos fundos. Vez em quando o pai
recebia amigos. Sussurravam pelos cômodos da casa. Dormiam no quartinho, em
meio aos papéis e livros. Uma noite a porta da casa foi arrombada. O barulho
pareceu à ela a explosão de uma bomba. Homens enormes de botas pretas levaram
os livros e os papéis. Levaram o pai e seus amigos. O pai nunca mais voltou.
quinta-feira, 23 de maio de 2019
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