Subir em pé de laranja nunca foi fácil. Arranhava as coxas,
cortava os braços, mas sempre valia a pena olhar o mundo lá de cima.Laranjas serra
d’água, a mãe lhe dizia. Era a mesma laranja-lima daquele livro que ela lia
para Alice, quando era pequena. Mas em Minas, tinha este nome. Alice achava que
era porque Minas tem muitas serras e muitos rios. Ela gostava de abrir a
laranja enfiando o dedo fura-bolo e partindo-as ao meio. Não se importava que o
caldo escorresse pelo seu uniforme de escola. A blusa já andava mesmo meio
encardida.
Todos os dias, chegava da escola às onze e meia, mas a mãe só
sentia sua falta lá pelas duas da tarde. Tinha muito tempo para olhar o mundo,
chupar laranjas e sonhar. Sonhava tantas coisas. Com duas barbies e sua
casinha, com vestidos e sapatos que via nas vitrines. Mas seu sonho mais
sonhado era ter um pai que todos os dias a esperasse em casa. Sonhava também
não precisar ver, quase sempre, um homem diferente que se despedia da mãe como
se ela não existisse. Eles jogavam o dinheiro sobre a mesa e saiam.
Um dia quis saber dela porque eles lhe davam dinheiro. Ela
não respondeu. Continuou na corrida de fazer almoço atrasado. Perguntou
novamente. Ela lhe deu um tapa na boca.O sangue sujou seus dentes e lábios. De
tão espantada, não chorou. Ela também se espantou. Pediu perdão. Disse que
estava garantindo que a filha tivesse uma vida melhor que a dela.Tentou abraça-la.
Alice fugiu para o quintal. Desde este dia o pé de laranja serra d’água virou
também seu confidente.
Quando se formou no ensino fundamental, não tinha mais
escola para ela em Santa Maria. A mãe resolveu que iriam para Itabira. Mudaram-se
com o pouco que tinham e como dinheiro de um dos homens que visitavam a mãe, o
único que passava a mão na cabeça de Alice e sorria para ela. Era um
empréstimo, a mãe dizia a ele e a ela mesma. Ele dizia: não precisa me
devolver. Você sabe como me pagar.
Itabira não as recebeu muito bem. Todas as noites ela ouvia
a mãe chorar. Tampava os ouvidos. Fingia que ainda estavam em Santa Maria e que
no dia seguinte rasgaria suas mãos nos espinhos da laranjeira.Voltaria a
sonhar. Mas o dia seguinte era igual a todos os outros daquele último ano. A
mãeficava cada vez mais estranha e agia como se nada estivesse acontecendo. Alice
aprendeu também a fingir que estava tudo bem. Tinha medo de perguntar e não
saber o que fazer com a resposta.
Continuava chegando mais tarde em casa. E a mãe trancada no
quarto na hora do almoço. Ficava na biblioteca da escola, cada vez mais
encantada com as viagens que fazia nos livros. Quando terminou de ler Teresa
Batista Cansada de Guerra não pôde deixar de pensar em sua mãe. E pensou que se
sonhasse forte ela poderia encontrar um Jereba, mesmo que fosse casado.A ideia
era tão boa que saiu correndo para contar a ela. Chegou em casa sem fôlego.Foi
direto para a cozinha. Na pia estava aquele facão que a mãe usava para cortar osso
da carne de porco. Sempre achou que ele não era bem afiado, porque ela tinha que
bater com um pedaço de madeira para cortar o osso. Mas ela não deixava Alice
chegar nem perto dele.
Era estranho ela não estar ali. As visitas dela nunca
ficavam até aquela hora. Percebeu o silêncio sussurrando na casa.Não a chamou.
Não tinha este costume. Foi ao fogão e as panelas estavam vazias. Apenas a panela de feijão
permanecia lá, quieta e fria.Passeou o olhar em buscar de algo
diferente na cozinha. Apenas a ausência dela e aquele facão meio enferrujado sobre a
pia.
Voltou pelo pequeno corredor e entrou no quarto que dividia
com ela. Tinha um medo estranho doendo no estômago de Alice. Um medo que a
fez parar assim que entrou no quarto. Lembrou das orações que a avó lhe ensinara
quando pequena, para seu anjo da guarda.Foi rezando e entrando devagar.Só a viu
depois que rodeou a cama de casal onde dormiam. Ela estava no chão. Nua. Suas coxas estavam
ensanguentadas, seus seios pequenos com um buraco entre eles e um caminho de
sangue grosso saindo daquele buraco e se espalhando em sua barriga.
Ficou ali olhando-a. Sem reação. Sem grito. Sem choro. O anjo
lhe dizia que deveria fazer algo, mas seus olhos estavam presos nela. Não soube
por quanto tempo ficou assim.Só conseguiu pensar no facão lá na pia da cozinha. E na
mãe definitivamente coberta de sangue ali no chão. Definitivamente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário